quinta-feira, 29 de julho de 2010

Doce resquício

A tarde tomando seu café doce, extra doce.
Foi uma tarde gostosa, lenta e que embriaga.

Depois de sair da sua casa fui tomar outro café. Na verdade, fui jantar.
Mas depois do jantar tomei um café sem açúcar.
Ele me pôs novamente no meu eixo, como se me restituísse o meu ritmo.
E me desligou da tarde de hoje. Ela passou a ser, muito facilmente, uma lembrança distante, porque pareceu algo de fora, de outra época.

Três longos cafés doces, em uma tarde inteira.

Um breve café amargo, no final da noite.

O doce da tarde ficou raspando minha garganta, mas era de leve, parecia uma nostalgia. Aquele resquício que permanece quando o fato já passou.

Então, quer dizer...
Não, não como uma lembrança distante, mas como uma sensação de bem-estar, de prazer em passar a tarde.
E é como se o amargo do fim da noite me tornasse um pouco consciente do que aconteceu, me tirando desse estado prazeroso de embriaguez.



O amargo café, em outro ambiente, com outras pessoas...

Volto para casa.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Não consigo comer o mesmo tanto que vocês

É difícil não entrar no ritmo que me coloca o mundo.
Difícil não fazer parte do sistema.
Muitas pessoas não entendem o que faço e não conseguem ver ordem em minha vida.
Que ordem?
Ordem de quem?

Não.
Não estou em frente à televisão no horário das novelas e nem dos jornais noturnos.
Não, meus horários não me permitem estar em trânsito entre às 18:00 e 19:00.
Não, meu sono não segue um padrão regular como os ônibus desta cidade. Um intervalo noturno.
E não, principalmente a minha fome, minha vontade de comer, os horários do meu corpo não se reduzem especificamente ao meio-dia, sentada ao redor de uma mesa, comendo. Almoço: a principal refeição do dia.
Estou fora desse principal, não me encaixo.
Meu corpo não obedece a esses horários e de todas as imposições, e por mais terrível que isso possa parecer a você, essa foi a que eu nunca consegui me encaixar.
Estou fora dos almoços, fora dos desjejuns e dos jantares seguindo um cronograma de horas repetitivo e bem marcado. "As três refeições majoritárias para uma boa alimentação".

Meu sono segue os latidos da minha cachorra e os impulsos de cansaço do meu corpo combinado com cafeína.
Meus horários seguem o meu nível de produção escrita, que não são nunca previsíveis pois estão ligados às minhas emoções.
E minha fome segue apenas a minha vontade de comer.
Ela aparece quando bem entende e geralmente é tardia.
Ela não aceita qualquer comida e não se prende simplesmente a vontade de comer, até mesmo porque quase nunca sente fome.

Estou bastante fora do sistema.
Se perco o sono, fico 2 ou 3 dias lendo e escrevendo.
Com o cansaço, durmo o mesmo tanto seguido.
Esse é meu ritmo.
Isso é a falta de rotina.

Mesmo assim, sinto as forças coercitivas e quase todas inconscientes que tentam me colocar nos horários "saudáveis" de uma vida normal, com hora pra tudo.
Mesmo assim, me habituei aos olhares e às expressões de espanto tentado entender como ainda consigo viver.
Mesmo assim, já sei os conselhos que me dirão sobre a saúde e sobre a velhice; sobre o tempo e sobre uma vida "tranquila".

Mas quem disse que não tenho uma vida tranquila?
E quem disse que quando faço as refeições dentro do padrão eu fico "saudável"?
Se enganam todos vocês.
Eu entendo e considero o espanto de muitos, ainda é inconsciente e sincero por terem sido tão bem moldados dentro do que é o "normal" ao ponto de não conseguirem entender outras formas de vida.
Fácil? Bem, nem tanto.
Pois de qualquer forma, estar fora do padrão nunca é mais fácil do que estar dentro.

Só que não consigo comer o tanto de vezes que vocês comem.

E não estou pensando em ordem quando deixo o meu corpo dizer o que ele quer, ao invés de empurrar-lhe comida e sono e um ritmo que não é dele.
A minha vida não depende de uma ordem externa, como a de vocês, como é fazer parte do sistema.
A minha vida depende de uma ordem interna.
E assim, vivo bem.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Génesis

De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.


Nem de existir,que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver,que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.


Por mais justiça ...-Ai quantos que eram novos
em vâo a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade...Ó transfusâo dos povos!


Não há verdade:O mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais,todos mentiram.

 
Jorge de Sena

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Pequei

Eu pequei. Pequei o pecado original.
Então me arrependo
peço misericórdia a Deus.

Natureza pecaminosa
é a minha.
Não participo da santidade,
não estou entre os santos,
por isso, peço perdão.

Sou dos que tremem diante da glória.
Não sei ser santa, e
Senhor, como é difícil
tentar ser.

Sim, sou pecadora
e em mim jogam milhares de pedras.
Misericórdia, Senhor.
Misericórdia...

Só que não é você,
Senhor,
quem me joga pedras.
Elas não vem de cima, mas me atacam nas pernas
machucam
meus pés.
Algumas acertam na altura do tronco,
barriga,
seios
- os quais chamam imundos.

As pedras vem dos lados, Senhor.
São os outros quem atiram.
Estão do meu lado
em volta de mim.

De mim querem tampar minha vergonha
e querem também que eu não chore,
afinal, estão eles no direito deles de
reagir atacando
ao que é anormal, diferente,
ao que ninguém esperava
ou imaginava
ou entende.

O que eu fiz, Senhor?
Pequei.
Peço perdão.
Sou pecadora
e estou sangrando.
com as cicatrizes que não fecham
com machucados novos
 - das pedras que me jogam -
que insistem em abrir.

Sou uma pecadora, Senhor
Nasci em pecado.
E "Todos pecaram..."
mas as pedras chegam à apenas alguns.
Sinceramente, Senhor,
sou
uma pecadora.

Sinceridade...
e quem acreditará?
e será suficiente?