domingo, 29 de agosto de 2010

cabeça...

chacoalha, chacoalha, chacoalha!

cheia de coisas.
cheia de coisas.

cruza, passa, volta, sai.
amarra, anda, grita, pula.
entra e gira.
só não pára.
não pára...

cabeça, cheia cabeça!
efervescência.
não consigo dormir, só fechar os olhos.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrêla
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espêlho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem





Mário Cesariny

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

um desabafo

Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.

Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.



Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar, quando caí.

 
 
Cecília Meireles
Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas do próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem



Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

 
 
Mário Cesariny
Nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
E os braços dos amantes escrevem muito alto
Muito além da azul onde oxidados morrem

(...)

Entre nós e as palavras, os emparedados
E entre nós e as palavras, o nosso dever falar.



Mário Cesariny

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

um feminino deslocado e transgressor

Quando penso em parar de escrever, parar de estudar e sair, curtir a tarde, algum caso, ver novelas bobas ou até ir ao cinema, sinto algo que me prende.

Conversar, ver vitrine, ter um namorado, se importar sobre cabelo, unhas, maquiagem, manter a forma - estrita forma! - magra e de "mulherão", fazer as sobrancelhas, ser amorosa, cuidadosa, atenciosa, meiga e dócil, (ops!) quer dizer, ser doce.
Mas tão nova, não tem interesse em sair, não quer conhecer gente nova, arranjar um namorado - e mantê-lo!, não pensa em casar, ter filhos...
Quando não estuda faz coisas estranhas, não se socializa, sempre os mesmos amigos, os mesmos lugares, e em casa por gostar de estar em casa sendo solteira e jovem???
Isso é uma loucura!

Poderia, bem que poderia, mas não cabe.
Não é isso que eu quero. Não é isso que está aqui dentro de mim, chamando minha atenção.
Esse tempo, tempo inútil, perdido fazendo coisas que não me agradam; que agradam os outros.
Me controlar em um acesso de fúria, de raiva. E a mais sincera irritação? Não, não.
Pra ser meiga, doce e passiva? Ah, passiva! Não, não sou passiva.
E isso destrói os seus castelos de areia construídos a minha volta.
Isso destrói as imagens que você fez de mim.
Eu destruo o que você procura em mim.

Desculpe, meu bem, mas sou mais do que você pensava em ter, e aí está o por quê de sua admiração;
e sou mais do que você queria ter, e aí você entra em choque porque existem tantas coisas em mim que são inconciliáveis e que não cabem no sonho perfeito do amor, onde eu, a mulher, sou a que abro mão, a que sempre cede.

Sim, gosto de unhas grandes e de cores nelas. Gosto dos cachos que saltam da minha cabeça.
Mas que fique claro que isso é gostar e que é meu, não seu, não de um mundo masculino que fecha as minhas pernas e as cruzam como sinal de bem lacrado.
Desse mundo masculino que olha para as minhas saias e dizem ser curtas demais, afinal, "Que mulheres usam saias curtas? Você até estuda!"
Meu bem, não me mande trocá-las. Não exerça em mim os seus comandos masculinos, com a sua voz grave e séria, pesada.
Não é assim a voz masculina?
E a feminina? Histérica?
Talvez.

E é aí que não consigo ficar longe do teclado e dos livros. Realmente, é pra isso que eu "até" estudo.
Para retirar essa concepção de feminilidade passiva e dócil - dócil sim, como um animal a ser domesticado.
Para desconstruir o que falam de mim em um mundo machista e masculino.
Estou deslocando você.
Transgrido normas, comportamentos, pensamentos; enquanto que outros eu aceito de bom grado. E isso, isso meu bem, te deixa louco!
Sem entender o que está acontecendo. Sem saber se me amaldiçoa, ou se me beija.

Sou progenitora e portadora da vida. Sou eu quem a continuo, quem carrego essa possibilidade dentro de mim.
Mas, olha só, não há mais ciclos menstruais, nem TPM's nervosas e depressivas, nem a lembrança dessa fecundidade todos os meses.
Não há.
O que há, então?
Há dias com níveis estáveis de hormônios circulando pelo meu corpo.
O que houve?
Houve a decisão, minha, de não querer me lembrar da possibilidade de vida que levo.
Houve a vontade de sentir raiva apenas porque o mundo me enraivece constantemente.
E de dizer, mesmo sem essa marca maior das mulheres: Eu sou uma mulher! Isso também é ser mulher!

É por isso que sento e fico horas escrevendo e lendo. Vendo o corpo da escrita se formar lentamente.
Livros como torrentes, ideias e teorias "nem sempre producente".
O caos desta mesa, o amontoado de letras.
Ao lado, peças pintadas, desenhos, gestos e fisionomias congeladas.
De repente, levanto-me, pego um copo d'água e ando pela casa.
É uma falta de lugar.

"A mulher se pergunta quantas vidas seriam necessárias para se fazer tudo. Ler os livros necessários, amar os amores felizes, gozar os corpos agradáveis, dizer as palavras certas, escrever a tese inevitável, elucidar as dúvidas e justificar escolhas, ser mal compreendida, sofrer as perdas irrecuperáveis, mudar o cabelo de vez em quando, entender o que deve ser entendido, fazer-se entender no que deve ser entendido."

E eu respondo: uma.

"É necessário reconhecer o prazer de fazer o que faz, mesmo que em alguns momentos seja penoso, o corpo cansado das longas horas e das longas páginas nem tão longas assim. Estar acordada enquanto todos dormem. Conforma-se em ser uma adiadora. P/rever a percepção de seus caprichos. Acadêmicos. Outros. É necessário saber que uma outra cidade antiga/nova/insuspeita a espera e espreita de dentro de sua longínqua existência."



Com a participação de Luciana Borges, entre as aspas.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

o coração vive das sombras de uma aroma. ...esse iludido

Provavelmente porque o ser se intranquiliza
de já não ser o que ia sendo; intensamente,
porque as fogueiras de um martírio impenitente
são seus triunfos, seus troféus cheios de cinza;
e finalmente porque tudo o que agoniza
quer promulgar, solenizar o impermanente,
o coração, naquele fundo ambivalente
da coisa humana, momentâneo como a brisa,
mas persuadido de que as músicas da mente
hão de reter do ser mais do que uma soma,
o coração vive das sombras de um aroma.
Só muito raramente esse iludido sente
a força de acordar antes que a luz cadente
o deixe louco como à mosca na redoma.




Bruno Tolentino

mas... eu amo la trama más que el desenlace.

te vi cambiar tu paso,
hasta ponerlo en fase,
en la misma fase que mi proprio paso...

...amar la trama más que el desenlace.


jorge drexler
quando as mãos se desprenderam,
braços me carregaram.
quando o abraço se soltou,
uma ciranda em volta de mim se formou.
quando a dor me tirou o sono e a respiração,
outros sonos foram tirados e mais olhos vigiavam comigo os amanheceres.
quando o amor não suportou,
a amizade me encontrou e firme me segurou.

às vezes entramos em um mundo cheio de ilusão.
pobre de mim, coração, que não soube ser ilusório.
pobre de mim, corpo, que ficou frio e ressecado.
pobre de mim, mente, presa em suas lembranças confundidas com a imaginação.

amores, amores, amores...

terça-feira, 3 de agosto de 2010

...um peixe dentro do vento.

O que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados?
Respondo que o oceano sabe.
Por quem a medusa espera em sua veste transparente?
Está esperando pelo tempo, como tu.
Quem as algas apertam em seus braços?,
perguntas mais firme que uma hora e um mar certos?

Eu sei perguntas sobre a presa branca do narval e eu respondo contando
como o unicórnio do mar, arpado, morre.
Perguntas sobre as plumas do rei-pescador
que vibram nas puras primaveras dos
mares do sul.

Quero te contar que o oceano sobre isto:
que a vida, em seus estojos de jóias,
é infinita como a areia incontável, pura;
e o tempo, entre uvas cor de sangue,
tornou a pedra lisa, encheu a
água-viva de luz, desfez o seu nó,
soltou seus fios musicais de uma
cornicópia feita de infinita madrepérola.

Sou só uma rede vazia diante dos
olhos humanos na escuridão
e de dedos habituados à longitude
do tímido globo de uma laranja.
Caminho como tu, investigando
as estrelas sem fim e em minha rede,
durante a noite acordo nu. A única
coisa capturada é um peixe dentro do vento.

Pablo Neruda

Imutável...

Nesta claridade silenciosa e pálida
os vultos deslizam como sombras
no entanto nítidos e contornados
por um brilho que entontece o olhar.

Há uma distância incomensurável
entre nós. E dir-se-ia que
nenhum gesto é bastante para os atingir.
O tempo se fez distância.

Paralisado em transparência gélida
eu não mudei porém. Pelo contrário
é como se contido o ardor fosse maior.

E doloroso mais. Porque de antigamente
o não-ter e o perder ainda eram
certeza de atingir, senão de amor.

[...]



Jorge de Sena